quarta-feira, 10 de setembro de 2014






 


 

 




 

 

 

 



 

 








Crônicas do meu tempo...
Amália Grimaldi
Bahia – Brasil  – 2014









 

 



 


 







 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Amália Grimaldi - Biografia

 
Amália Gonzalez Grimaldi Frank é natural de Salvador, Bahia (15.11.43). Dentista por formação escreve por devoção.  Artista visual, tem tido participação ativa em diversos salões de arte do Estado com mostras de pintura e fotografia. Sua linguagem é bastante expressiva, contemporânea.

 
Descendente de pai galego e de avô siciliano, Amália cresceu entre os conflitos eloquentes das diferentes linguagens culturais assimilando valores distintos.

 
Casada, tornou-se mãe e avó. Tem viajado pelo mundo, principalmente pela Espanha, (região da Galícia). Seguiu em busca de elementos circunstanciais que pudesse juntar à memória familiar paterna e assim, escrever a sua própria história.

Na Sicília, mais precisamente em Siracusa, buscou sentir e assimilar na história da humanidade, resquícios da cultura greco-romana, e assim, poder perfilar o caminho do elemento migrante. Entender o porquê da tão longa trajetória percorrida pelo seu avô materno, vindo a se estabelecer nas terras baianas de Cairu e Valença.

 
Como professora assistente, junto a crianças com necessidades especiais, fez parte do corpo docente da Nhulunbuy High School, em Arnhem Land, Austrália. Após dez anos de experiência diversificada nesta região, foi-lhe concedido o titulo de cidadã australiana.

 
Amália vem se dedicando à carreira de escritora desde que regressou ao Brasil em 2002. Antes, (1974–1979) atuou junto às populações indígenas ribeirinhas do amazonas, no Alto Solimões, onde prestou serviço odontológico aos povos Tikuna e Marubo,  através da agência oficial governamental competente (Funai). Por dois anos fincou os pés na Ilha do Bananal para mais uma vivência étnica  junto aos Karajá / Javaé, onde apendeu inclusive elementos da língua Macro-gê. Em missão assistencial também esteve em contato com o povo Tapirapé, do grupo linguístico Tupi.  Amália é sensível à causa indígena, pela determinação dos povos, e respeito ao direito de posse da terra.

 
“Quando” – o seu  primeiro livro de poemas (artesanal), e “A Casa da Rua do Cais do Porto”, seu segundo livro. Participa da coletânea “Rio de Letras”, editado pela Fundação Pedro Calmon. Faz parte de coletâneas da editora Pimenta Malagueta, que editou da sua autoria “A Filha do Padeiro Galego”, lançado em 2013 em Salvador, na Sociedade Caballeros de Santiago. Convidada pelo Gabinete Português de Leitura – Salvador-Bahia, fez palestra sobre o tema do livro.

Foi selecionada no concurso de poesia, Prêmio Damário da Cruz, Fundação Pedro Calmon – Bahia, fazendo parte do livro publicado pela Secult. Atualmente é cronista semanal do Jornal Valença Agora.  É membro atuante da Academia Valenciana de Educação, Letras e Artes de Valença – AVELA, e   da UBE – União Brasileira de Escritores.

 

 

 
Poemas – Amália Grimaldi

 

Salada mista de padeiro galego

 

O mogno e o vidro

E a coroa de Ciro

E do vil contemporâneo

Essa grande colina erodida

A descrença do homem

Que tem no caído inútil fadiga

O não Ser. O espaço vazio.

 

Da acácia as cinzas

O pó levará o vento

Mas a luz é quem definirá

A sombra e o contorno do volume

A prisão do tempo não tem saída

Tem calendários. Rosa de ventos.

Caros instantes. Raros caminhos claros.

 

Uma despensa escura

E suas prateleiras incertas.

Seus dias. Meus dias. Cansados dias.

Não. Não mais haveria discussão

Quem ditaria a regra?

Entre o tempo e o fermento

E o sucesso da massa crescida

Razão na emoção

Valor de esperas atrasadas:

Sublimação temperada

Satisfação consagrada.

 

O cálice, a mulher

E o touro...

Da palavra inútil

Melhor o silêncio, ou

Um resquício de vergonha.

Bastar-se a si próprio?

 

Mão exagerada

Via dosar seu engano na guia

Do azedado vinho

Princípio aglutinador

Tardia aquiescência;

Concepção. Percepção.

– Salada mista de padeiro galego.

 

Entre o reino e a colônia

 

Caminho inverso

Trata questão angulosa:

“Madre de Dios...”

O galeão espanhol

(ainda por se achar)

Resiste no mito.

 

Entre o reino e a colônia

Tesouro que a fé consagrou

Sua riqueza maior

Guarda o imaginário popular.

 

Anjos barrocos, robustos negros

A circular pelo convés

Dos desejos alheios

Bíceps invejável exibiam

A força e o suor.

E, da albarda malvada,

Provável mialgia lombar.

 – O valor da forma

A serviço do tema.

 

Um sussurro... Um gesto de mão

No escuro é clara a intenção.

Abatido em seus desejos

O homem no pecado

Confronta Deus e Lúcifer.

E...,  o Capitão Padilha...

 

 Nas águas plácidas da baía azul

Deu-se o engasgo fatal...

De  tanto comer aspargos, dizem

Tinha ele verde a cara.

– E, Van Dorth então, não resistiu.

 

Forte argumento é voz repetida

 

Na íngreme incerteza

Daqueles seus dias

Da fruta nativa  seus caroços

Atiçavam por aí...

Entre o barranco e o mar.

 

Forte argumento é voz repetida; 

Sustenta frágil ídolo.

Desse longínquo tempo

Restou-nos certezas

(que a História não conta)

Visto que, do colonizador europeu

(dito civilizado...)

Dele herdamos seus costumes;

Bons e maus.

 

 Bem dizendo o escrivão Caminha

... Lá, tudo o que se planta a terra dá...

Dito e certo! Sob fortes chuvas tropicais

A tão cantada fertilidade nativa

Logo se confirmaria:

– Sementes vingaram!

 

Lamento Marrano

 

A torre e o fidalgo

E o quarto aposento.

Degredo. Segredo.

Pisos magnânimos

Ídolos esculpidos...

Pouca água. Fala à toa.

O óleo secou de vez

E a lamparina

Há muito se apagou.

 

O sentido da Terra faz

O crente perfeito

Usos e cultos...

O mestre e o aprendiz.

Iniciante discípulo

Almeja o melhor destino.

– Homens suados carregam seus fardos.

 

Estão surdos

Não escutam canções de outros 

E suas línguas, tão espinhosas

São que nem urtigas

A queimar a pele na própria agonia:

...Não. Marrano? Não! Marrano não sou eu...

 

O velho muro e a verde gosma.

Do tempo, seus musgos

Nem sempre aclamados.

Do barro a alma a fama não salva.

O Éter. O Planeta. Axioma inicial.

Assisto o retorno do caracol.

 

Abóbora gigante. Razão do conflito.

A corte no banquete. Meu mundo.

Amplitude de esfomeados fartos.

 

No almoço do cristão galego

Cordeiro não seria imolado

Mas aquela sua faca era bem amolada

E o peru então, seria assim tão bem degolado.

 

 

O Galeguinho do Olho Azul

As unhas crescem. Os cabelos ultrapassam limites.

Vão e voltam. Às vezes nem voltam mais.

A pele transpira o suor. Sente frio e calor.

A pele, é este couro, do ser na sua individualidade

Inequívoca proteção.

O menino saruaba vestia couro cismado

Distinta pele que exibia sua cor.

Aquela, que para ele foi curtida.

Pois, do embrulho o presente, tem no seu melhor papel

Escondida a essência de seu conteúdo.

Olhos azuis, cabelos loiros...

Na fantasia exaltada sai por aí a repetir

Ser ele descendente de holandês.

Respeitado mito, logo transformar-se-ia em verdade

Na fé em que o povo repetia.

A não ser pela boca desse povo

Registro legal em folhas de livro grande

Isto, nunca foi visto.

 

Tudo de bom parece que vem do Norte

Tem lá seu gosto de maçã.

Não comporta travo de caju.

Sol da meia noite aqui não aconteceria.

Que seja por questão angulosa

Onde residiria tal contemplativa atitude.

A cor, pode variar a gosto, do azul celeste

Ao vermelho sangue

Antes passando pelo tom  laranja.

Antes ainda, pelo verde cítrico ácido limão.

Acima e abaixo desse Equador

Variação de cor é apenas questão formal.

E de pensar que eles nem gostavam de mangaba!

Entre a calmaria da Gamboa

E o agito do Morro de São Paulo,

Parece-me que somente a agudeza

De suas pedras afiadas podem falar

Forte argumento é voz repetida.

 É nessa crença que se imagina

poder  alcançar no perdão a graça divina. 

Quiçá, a reencarnação do  santo preferido;

Em mil cuidados por mãos caridosas,

ídolo de barro é carregado em frágil andor.

Balouçante desejo equilibra-se na bem-aventurança

Eis aí o dogma dos cinco mistérios gozosos

Um rosário de contas suadas

Que o drama do conflito parece envolver.

Outonal Elegia

Da antiga casa somente a fachada permaneceu.

Pendida à porta o número da placa ainda é o mesmo, 68.

De suas paredes,caliças escamadas

Pelas fissuras abertas perdeu-se o encanto aí sumido.

Horizontal crepuscular, sinto o declinar desse tempo

Oca da maldade, toca que sabia antes esperar por mim

Hoje, de sonhos vazia.

Na diurna escuridão que envolve o momento

Debruço-me à janela desse tempo

Enquanto o Sol, lá longe, já fez a sua previsível curva:

Outros aniversários e, natais em celofanes azuis

Embaladas efemérides ainda virão.

E eu aqui, guiada pelas mãos do detalhe,

Encontro- me nua, de ressentimentos desarmada

Enquanto os filhos de outros, ainda estão por nascer

Melhor no que faço, teço sapatinhos de crochê

E, frente à crueldade desse mundo,

Sei bem amarrar pontos ao entrelace.

Que cena mais bela! Diria a mim mesma...

Pois, a cada dia que passa, mais me surpreende as atitudes humanas.

Pode parecer coisa pouca, mas, meditar é um dom, agrega valor a alma.

Desço mais um livro dessa estante...

E, de páginas escolhidas, salta-me o maior prazer.

 

Oh, mundo turvado! Ou seria esse meu momento pasmo ?

Corro, pois tenho pressa. E no receio de que a luz já se apague,

Embarco nas asas da libélula transparente; alma apaixonada.

Alhures, cantos aqui me chegam, não os de sereia

Mas de um Tritão apaixonado, e que diz esperar por mim.

Sinos estão a repicar. Solto as amarras. Desato cordéis.

Liberta de escrúpulos,  já corro ao seu encontro.

 

Amália Grimaldi - "Outonal elegia" 2014

 

 

 

Crônicas do meu tempo...

(Amália Grimaldi)

Pingos no chão e bolhas no ar...

 

Em Salvador, no bairro do Garcia, lugar pacato onde morava, na Leovigildo Filgueiras, logo ao dobrar-se a esquina do Colégio Antônio Vieira, havia lá um beco de má fama. Havia nesse lugar quintais malvistos. Tão difamados eram esses terrenos abandonados! Mas, faziam a alegria de nossos verdes canudos; aí cresciam fartas mamonas.

 

Desvio do olhar – A casa de Leonor, sempre bem cuidada, pintada todos os anos, de tão alva,  mais parecia um bolo de noiva! Ficava à entrada desse beco. Na realidade, tratava-se da Rua da Curva Grande,  hoje irreconhecível.  Luxuosos arranha-céus  foram aí surgindo, ano após ano, e logo substituíram  as graciosas casinhas coloridas tipo bolo confeitado. No atual movimentado trânsito, de carros novos reluzentes, diria ser o bairro do Garcia e arredores, tratar-se de  morada de alto padrão.

 

 A Curva Grande, que se dobrava  à esquina do colégio dos padres, no meu tempo de menina, lembro-me bem, não rezava  lá de boa reputação. No deslize da atenção adulta,  eu e as meninas gêmeas da Casa da Torre,  mais as outras, as da Casa Rosa, embarcávamos num prazer volátil. Seguíamos a viajar naquelas esferas transparentes, nossos planetas de luzes – bolhas de sabão azul.

 

Canudos de mamona, e, no caneco esmaltado, água de sabão. Era o quanto bastava. O chão de nossas casas se via constantemente molhado. Na dança das horas, parte da rotina doméstica, a vassoura e o esfregão se mostravam incansáveis. Mantra necessário, aquelas reclamações eram uma forma de oração.  Todos os dias havia falação. Acostumada àquele lenga-lenga, já fazia ouvido de mouco, e assim, ia passando.

 

Pingos no chão e bolha no ar! Como passavam leves aqueles meus dias de menina! Dias ensaboados, no prazer molhado. E eu, menina levada, escorregadia, sabia bem deslizar nas mentiras. Por sinal, desculpas bem esfarrapadas, mas, que de certa forma, me livrariam de possíveis castigos. Detestava ter que ficar de pé de cara contra a parede.  – “Vou ali, na casa de tia Gem... Volto já.” E assim, prontamente desaparecia de vista.  Sumia no fascínio irresistível, de quintais proibidos. A esquadrinhar os limites impossíveis daquele universo negado, sentia-me livre que nem Marco Polo, um aventureiro em busca de novas terras.

 

Fotografia em preto e branco costuma exibir facínora de crônica policial. Cara feia de meter medo a menino. E a gente grande também. Personagens de rua vestem, muitas vezes, acontecimentos sinistros. Na aparência se fazem figuras do mal.  Havia justificada preocupação. Até que um dia, as barras de sabão azul, para nosso desapontamento, desapareceram do tanque de lavar roupa. Se bem que eram tantos os culpados, mas, não se poderia apontar o dedo. Não havia lá muita certeza. Sem outra alternativa, os adultos sabidos, acharam melhor esconder o sabão de nossas vistas. Na verdade, em decorrência de tanta proibição, criatividade nunca nos faltaria. Logo arranjávamos outra saída.

 

Guerra de arraias. Com os meninos do Beco do Sabino aprendemos fazer coloridas arraias de papel de seda e lascas de bambu. Mal intencionada, a linha, como ainda se faz até hoje, era temperada com uma espécie de cola sinistra. Para tal se fazia necessário moer o vidro, o ingrediente principal. Cabia ao bonde fazer o serviço de graça. Garrafas vazias, de vinho ou de cerveja, surrupiadas às pressas das prateleiras da escura despensa da casa seriam, a contento, esvaziadas para tal. Nem pensávamos nas possíveis consequências – doloridas chibatadas de correia e bolos de palmatória. Mais tarde davam por falta das garrafas. Fazíamos cara de inocente e ficava por isso mesmo.

 

De ruas e de vielas mais próximas, do Beco do Sabino e do Beco dos Protestantes, costumava reunir uma turma notável. Mais precisamente pelos malfeitos. Meninas e meninos, mais ou menos da mesma  idade, fazíamos juntos incursões desastradas. Sem precauções, enfiávamos por aqueles quintais, um mundo de perigos fascinantes.  Ninguém por lá nos poderia achar, de tão densa que era a vegetação. Cortar o dedo em cacos de vidro ou em latas de conserva era acontecimento banal.  Ao passar de raspão pelos arbustos de urtiga e cansanção, muitas vezes dolorosas queimaduras nos faziam chorar de dor e logo corríamos para casa.  “Urine em cima que passa...” Na verdade doía mais ainda.

 

Pingos no chão e bolhas no ar!  Corríamos atrás da nossa preciosa invenção. Verdes canudos de mamona. A chafurdar por aqueles quintais repletos de rejeitos domésticos divertíamo-nos a valer. Tudo isso sem a falsa necessidade de brinquedos de colorida matéria plástica “made in USA”. Carrinhos e bonecas, os brinquedos dos possuídos de bens eram comprados nas lojas caras de Salvador, na subida da Rua Chile.

 

Quintais reveladores de gratas surpresas. Esses lugares cheinhos de perigos nos atraíam. Via-se aí coisas impensáveis. Até brinquedos caros! Levemente danificados eram despejados  nos terrenos baldios.  Os criados da Casa Amarela e também os da Casa Alva, sob as ordens dos patrões, disto se encarregavam.  

 

Férias escolares. Tempo de vadiar. A boneca loira de olhos azuis com um rombo na cabeça foi disputada a tapas. Ganhei!  Mas, ao chegar em casa, que decepção!  Arrancada das minhas mãos,  logo foi levada de volta ao lugar de onde tinha vindo – para o lixão da Curva Grande.

 

Na realidade, havia aí nesse pedaço de bairro, além de quintais malvistos, o império de uma feia maldade    um espaço de separação radical. As amas, da Casa Azul e as da Casa Amarela, seriam encarregadas de manter as meninas de seus amos afastadas, o mais distante possível,  do nosso grupo.

 

O grupo dos rebeldes. – Leonor, a menina esnobe da Casa Branca, virava a cara para mim quando passava. Ah, como odiava Leonor! Observava de soslaio, quando ela seguia galante, ao lado da babá empertigada, que usava touca e avental, um impecável e engomado uniforme branco. Mas, não é que de certa forma até nos comunicávamos:  em retrubuição fazíamos caretas horrorosas. Trocávamos gestos, não muito educados, mas, de grande satisfação afinal.

 

Cabelo  rapado e pimpão ajeitado em pastosa brilhantina.  O estilo topete era moda na época. Havia guerra de mamonas. Meninas contra meninos. Ardilosa, sabia manejar bem o estilingue. Logo surgiam lustrosos calombos nas cabeças dos meninos. Só os mais fracos choravam. Bobos! Por isso mesmo se tornavam alvo predileto de nós meninas.  Quantas vezes corria a esconder-me no interior do enorme guarda-roupa negro de imbuia no quarto do meio! Sentia-me culpada por fazer o menino Solon chorar. O coitadinho era tão franzino! A mãe, Dona Olga, professoara da banca de Matemática, costumava enviar seu porta-voz, pau pra toda obra, a ama da família, que batia à nossa porta.  Amélia, a nossa fiel ama negra, sabia usar de bom senso. Tentava acalmar os ânimos. 

 

– “Pode deixar... O pai dela vai logo saber. Assim que sair a última fornada. Ela (eu) vai ficar de castigo!” Geralmente isto não acontecia. Afinal, eram tantas as reclamações! Não adiantava mesmo levar adiante aborrecimentos menores. “Coisa de criança...” 

 

Meu pai, o padeiro galego do bairro, simpático e comunicativo, nem tinha ainda cabelo branco quando enviuvou. Disputado pelas solteironas do bairro, principalmente por Dona Olga, que sabia nos tapear nos enchendo de mimos com deliciosos bolinho-de-estudante, ainda bem quentinhos, que costumava mandar para nossa casa, num pratinho de porcelana fina, de orla dourado. “Quem a boca de meu filho adoça...” Mas, parecia que meu pai não se entusiasmava por tais quitutes. Ele andava mesmo era muito ocupado. Não se decidia. Nem por esta, nem por aquela. E eram tantas! Noite e dia se via meu pai ao batente, entre o forno e o balcão. Costumava acordar bem cedinho. Mantinha a mão na massa, da manhã até ao anoitecer. Até que fosse vendido o último pão do balaio.

 

Notável paleta de cores, era aquele dia  que se ia feliz: final de tarde ao sol poente. No batente da frente já se via cama feita, breve morada de um cão sarnento.   Satisfeito, na má fama que possuía, Plutão, o velho cachorro de rua, contente, se lambia aos nossos pés.

 

Pingos no chão e bolha no ar! Regresso ao templo da infância, lá vejo ao canto desprezado o velho armário de cozinha. Portas trancadas. Chave escondida no bolso do avental. A ocultar a razão do efeito inebriante, desejo negado, moveria prazer intocável. Efêmero existir suportaria o medo no mito da calada intenção adulta. Sim, porque teria na voz, a chave a vez do “não”. Sua intenção malvada.

 

Terrenos baldios. Histórias reais. Mamonas verdes aí cresciam fartas. Por entre fornadas de pão-de-açúcar seguíamos soprando os nossos canudos verdes. Bolhas no ar! E assim fomos crescendo, inteligentes; na sábia arte de driblar os adultos tolos.  Quantas vezes retornaria aos ermos quintais da minha cara lembrança! De casas abandonadas dos barrancos molhados; afamados sumidouros da Rua da Curva Grande. Aventura de criança, precaução de adultos. Medo razoável. O que viria depois? Irresistível orbitar. A sensação do prazer intocável. Sem mágoas apresso meu passo. Refaço-me em águas antigas. – Pingos no chão e bolhas no ar!

 

 

Um índio que falava francês

 

 

Brasil Central. Latitude 14° Norte. Outubro de 1982. Já caía a noite. Da minha base, na aldeia Karajá de Hãwàló, em Santa Isabel do Morro, à margem esquerda grandioso rio Araguaia, na Ilha do Bananal, um remoto posto indígena, a esse tempo administrado pelo recém-contratado indigenista Eduardo Almeida. Como eu, ele também era de Salvador e assim, nos entendíamos muito bem.

 

 Em São Félix do Araguaia, na margem oposta do rio, já nos limites do estado do Mato Grosso com Goiás, hoje Tocantins,  ficava a paróquia sede do bispo revolucionário Dom Pedro Casaldáliga.  Fundador da Pastoral da Terra, e ideologicamente considerado homem perigoso. Sob um regime politico autoritário, os militares ainda no poder,  este religioso sofria sob variados tipos de repressão, de tortura velada. São Félix do Araguaia, para nós funcionários da Funai, tornara-se um lugar proibido, perigoso. Um terreno minado. Havia gente nos olhando, vigiando. Cochichos e delações, prazer de muitos “dedo-duro”. Algumas vezes, na surdina, também estive aí visitando o bispo. Privilégio meu. Tive a oportunidade de assistir algumas discussões relevantes em torno de assuntos beligerantes. – O índio versus posseiro. Discutia-se o assistencialismo por parte do órgão federal encarregado da proteção dos índios.

 

 Missão de trabalho. Rumo norte alcançaria a aldeia de Macaúba. A seguir, a aldeia Javaé. Alcançando o rio Tapirapé, a aldeia do mesmo nome e na mesma área, uma pequena comunidade Karajá.  Uma mineira de Pedra Azul, Rosinha, moça tímida, era a professora recém-contratada pela Funai. Seguiria viagem comigo no mesmo barco.

 

 Percalços de viagem, uma aventura invulgar, marcaria as nossas vidas a partir de então. Diria que,  prenúncio de tragédia anunciada, mas que felizmente não chegaria a acontecer. Tornamo-nos amigas. Rosinha deixava entrever na sua delicada e pálida face, uma expressão de natural preocupação: o encontro direto com um mundo desconhecido até então. Sua destinação seria o posto indígena da aldeia Karajá de Macaúba, à margem esquerda do grande Araguaia.

 

 

 

Comunicação precária. Valia-se do rádio ou do telégrafo. Não havia ainda nesse tempo telefone celular, nem tão pouco computador.  Caberia ao chefe do posto de Macaúba, o gaúcho Lourenço, o manejo daquela parafernália. “Câmbio... Câmbio... Alfa Tango...” Linguagem cifrada, seria um meio indispensável de sobrevivência frente ao inesperado naquelas paragens selváticas, longe de tudo e de todos, mas, perto, muito mais perto do que se pensava, do perigo, muitas vezes invisível, como no caso da terrível malária. Sei bem o que é tremer de bater queixo, e não tem cobertor que dê jeito. Depois teria que engolir aqueles comprimidos enormes de quinino e esperar pelo melhor, ou pelo pior – longos dias na cama do hospital.

 

 Isolada, longe do meio urbano (assim como eu), Rosinha teria que se fazer valer do uso de seu bom senso. Sabedoria, seria a nossoa fiel companheira. Ser corajosa afastaria os medos. Uma vez por mês, às vezes nem isto, teria a visita de um dentista, do médico e da enfermeira que viria aplicar vacinas necessárias.

 

 Como de costume, a cada três meses, seguia eu em missão de trabalho. Durante a estação das cheias, o transporte, muitas vezes precário, em barcos relativamente pequenos, eram sempre cheios. Os pequenos aviões que se fretavam, os monomotores, estariam disponíveis somente na época da estiagem. Nessa específica área de mata isolada, entremeada por rios, igarapés e lagoas, eu era a única dentista disponível, a serviço da Funai. Por dois anos permaneci como tal. Até que um dia, o coronel, chefe do departamento de saúde, lá em Brasília, ao qual estava subordinada, olhou para os belos desenhos geométricos que  estampava no corpo, motivos Karajá que a Xureréa, mãe do Korihete, antiga mulher do cacique Maluaré havia pintado com pigmento negro, nos meus braços e  mãos  com uma tinta feita de jenipapo e carvão.  Virando-se para o assistente ao lado, o coronel, ironicamente perguntou: "é esta a dentista que queria se tornar índia?!"  Pronto! Isto foi apenas o início do meu fim. No regresso das minhas férias em Salvador, estaria, posteriormente, irrevogavelmente demitida.

 

 Atrelada à uma equipe técnica mista, viajava  rumo às comunidades indígenas, contornando a Ilha do Bananal, navegando o braço menor do rio Javaés, quando então, chegávamos à aldeia Javaé e Macaúba, que ficavam bem próximas uma da outra.  Rio acima, alcançávamos o rio Tapirapé, e a aldeia indígena do mesmo nome, sob o comando de uma missão religiosa francesa – Terezinha de Jesus. 

 

 Calor infernal, mosquitos e desconforto. Nossas vidas estariam, literalmente falando, nas mãos de Seu Manoel, um conhecido barqueiro, homem nativo dessa região, considerado bravo e corajoso, na sua experiência de muitos anos, sabedor de cada curva do rio, tornara-se ele muito respeitado. Confiável.  Nele creditava-se viagem segura.

 

 Término da estiagem. A cada curva do rio, que ainda se estreitava devido ao avanço das praias, os bancos de areia se revelavam traiçoeiros. O Araguaia, entre o nascente e o poente, exibia aquela maravilhosa paisagem. Única. Novos eventos. Cada viagem revelava surpresas. Jacarés enormes, sonolentos lagartos me lembravam pré-históricos dinossauros. Um olho fechado e outro aberto, mas  estando bem despertos, pareciam em sono profundo.  Seus ouvidos estariam bem abertos a qualquer movimento mais próximo. Um passante incauto, ave desavisada e capivara sedenta, por certo cairiam logo no papo do faminto jacaré. Natureza pródiga. A cadeia alimentar aí se completava. Seus dentes, juntamente com a força da portentosa mandíbula, causavam receio. Animal poderoso! Todos nós tínhamos medo dos jacarés. Talvez por sua bizarra aparência. Quando da aproximação (intrusa) no seu habitat certamente se sentiriam ameaçados e avançavam.

 

 Seguíamos a viagem de maneira plácida, mas atentas aos obstáculos, geralmente pedaços de pau, troncos de árvores, que caíam dos barrancos costeiros e que poderia causar acidentes. Poderiam danificar a hélice do motor do barco, mas Seu Manoel estava de olho, par evitar suspresas.  Confiadas, acompanhávamos enlevadas, aquela deslumbrante paisagem que ia se revelando a cada curva do rio.

 

 Finalzinho de tarde meio nublado. Qual manto envolvente, assistíamos a descida daquele sinistro cobertor, um cobertor de nuvens escuras.  O horizonte à nossa frente subitamente desapareceu.  Inflado os medos,  diante de tal aviso, o qual não se poderia ser ignorado, visto que já  soprava um forte vento de proa.  Eliminadas assim possíveis dúvidas, chegou-se à uma sábia decisão: seria de boa prudência passar a noite num daqueles bancos de areia. O mais alto possível, um pedaço desnudado pela seca do verão, mas que já se ía tangido pelos ventos da nova estação; as águas do rio Araguaia já subiam de nível. E rapidamente, assim me pareceu. Aí, tinha certeza, ou quase, que não correríamos riscos. Pelo menos, ao lado de Seu Manoel, assim se pensava.

 

 Cauteloso, Seu Manoel diminuiu a marcha do motor. Aportou bem devagarzinho às margens do mais alto barranco. Água rasa, cuidou logo de levantar a rabeta do motor a fim que esta não viesse a bater na areia. Correria o risco de danificar-se. A seguir, desembarcou parte da bagagem. A minha  gorda mochila, a dele, é claro, e a da professora Rosinha, esta também avolumada, pois se tratava de óbvio excesso de primeira viagem.

 

 Trazia o barqueiro, como de costume, em missão de viagem longa, uma manta plástica de bom tamanho. Quanto a nós, as duas mulheres, já fragilizadas pela perversa besta do medo crescente, não trazíamos coisa parecida, proteção necessária, em caso de chuva num barco aberto como aquele. Talvez por esquecimento, não se cuidara antes desses pequenos, mas, revelados importantes detalhes.

 

 A chuva já se avizinhava. Apavorante. Traria com ela um forte temporal, com a potência energética de  raios e trovões. Fenômeno muito comum  a essa época de final de outubro na região do Brasil Central.

 

Curiosa, notei que Seu Manoel ia cavando com as suas largas mãos, na areia molhada, um largo buraco. Esculpiu, na sua experiência sertaneja, um largo espaço, um vão, não tão fundo, mas o suficiente para caber encolhido o seu avantajado corpanzil. Valor inestimável, era aquela  sua inseparável maleta de executivo, uma  007 de couro negro, a qual, carinhosamente, junto ao seu corpo logo acomodaria.  Seu Manoel conservava-se calado. Tenso, diria. Apenas agia. Então entendemos que deveríamos fazer o mesmo. Por sorte, ainda havia de reserva no barco  outras mantas plásticas. Não tão largas como a dele, mas que nos serviriam, pelo menos para cobrir as nossas cabeças. Seu Manoel, sem dizer uma palavra, gentilmente, no seu jeito caboclo, logo nos estendeu.

 

 Antes de adentrar a sua alcova-buraco, Seu Manoel  abriu a maleta 007, e, daí ví quando retirava uma arma – um revólver! Meu Deus! Pelo tamanho imaginei tratar-se de um “trinta e oito”. Já tinha visto coisa parecida, provavelmente nas páginas e crônicas policiais de jornais. Rosinha e eu, ainda com muito medo, não tínhamos palavras para retrucar. Nunca na minha vida havia tocado numa arma! Rosinha tão pouco.

 

 “Meninas, não façam cerimônias! Qualquer coisa... Podem se servir!!!.” Expressado de uma maneira tão natural, com tapinhas sobre o sinistro volume que já descansava sobre a sua maleta. Isto soou para nós como uma espécie de caçoada. Estaria arreliando de nós duas?! Homem prático e viajado, Seu Manoel não tinha mais ou menos. Ia logo direto ao ponto. Ao que falava se dava crédito. Pelo menos por questões de sobrevivência. Aliás, nunca escutara  antes, principalmente por tratar-se de um cavalheiro rude, tamanha “gentileza”.

 

 Rastejante, como um lagarto, via quando Seu Manoel,  jeitosamente, se enfiava sob a larga manta. Logo via-se todo coberto na sua alcova-buraco, ao lado de seu valioso pertence –, a sua maleta 007 e o revólver “três oitão”.

 

Tremendo de frio e de medo, meio aterrorizadas, Rosinha e eu, significativamente  nos entreolhamos.  – Meu Deus! O que será da gente! Pensei preocupada. Acho que ela também. Este foi sem dúvida um dos momentos da minha vida em que mais me senti indefesa. Nem  durante as minhas andanças pela vasta selva amazônica, nas trilhas percorridas entre Colômbia, Peru e Brasil,  trecho problemático, com o tráfico de drogas, de animais silvestres e de madeira, uma faixa de fronteira tríplice, lugar onde vivi por cinco longos anos, nunca me senti desse jeito. Diria desvalida. Entendi a lição. A partir daquele momento, sem pai nem mãe, seria cada um por si e, Deus por todos.

 
Caiu a noite. Interminável. Tão densa como a forte chuva.  Mas esta durou breve. Uma meia hora, talvez. Quando cessou de pingar, dos arbustos sobre os nossos telhados, providencial plástico de toalhas de mesa com adornos de abacaxis e bananas, algo novo já nos incomodava sob as vestes.  Enormes formigas, as conhecidas andadeiras, passeavam sobre a nossa pele. Um tormento.  O buraco se encheu delas. Não mordiam, mas incomodavam com a coceira irritante.  Na verdade éramos corpos-vivos, mas sentíamo-nos quase defuntas.

 

 De longe nos alcançava o estrugir de onças e os mil ruídos de bichos outros.  Ameaçador.  Tão longe e tão próximo! Este era o som da floresta circundante que tomava conta da noite. Ninguém ali iria dormir. Talvez cochilasse um pouco. Por questões de sobrevivência, nem é preciso dizer, acho que ninguém, em sã consciência, conseguiria dormir numa situação daquelas. Procurei afastar a lembrança temerosa da tarde. Aqueles enormes  jacarés ao longo das praias, não muito longe de onde estávamos.

 

 Lanterna prestativa. Seria uma boa arma de salvação, pelo menos assim pensava. Com frequência clareava o mostrador do relógio. Acho que estas foram as horas mais arrastadas da minha vida. Finalmente aliviada, assistia aos primeiros sinais de um final prolongado de uma madrugada sinistra.  A radiosa aurora, cuja luminosidade, resplandecente no céu ainda meio escuro, logo desvaneceu os maus presságios. Aos primeiros lampejos do sol logo partiríamos. Sem o café da manhã. Na ansiedade, enchemos o nosso estômago com água e muitas bolachas, uma atrás da outra.  Só nos restava sonhar com uma mesa bem posta. Talvez com sorte,  pão torrado e banana frita e, o aroma volátil de um café recém-coado. Apenas miragem distante. Ilusão de faminto.

 

 Paramos em Macaúba. Fomos bem recebidos pelo chefe do posto, o gaúcho Lourenço. Curiosamente ele era casado com a índia Suyá,  a filha do velho Karovina, um dos chefes da aldeia Karajá.  Comemos bananas cruas, e beijus sem sal. Ao invés de café, somente  água fria do pote, gentilmente oferecida. Abastecemos o barco com as frutas que Lourenço amavelmente nos ofertou.

 

 Despedidas. Abraços, recados e recomendações. A professora Rosinha ficou. E nós, o barqueiro e eu, partimos. No barco, restou um enorme vazio. Sentíamos falta da mineirinha de Pedra Azul. Embora calada, sua presença somava esforços. Companheirismo.

 

 Finalmente, já no Tapirapé. Preocupada com o tempo, comecei a pensar como seria a volta a Santa Isabel do Morro, a minha base já tão distante. A estação das chuvas comumente trazia incertezas. Algo me dizia, que após missão cumprida, como em outras ocasiões, regressaria sã e salva.  Remeteria à Funai em Brasília para avaliação de praxe, os muitos papéis, geralmente  em quatro vias, relatórios de mais uma atuação. Quanto à  minha pessoa, restariam muitas dúvidas, e questionamentos lógicos quanto a duvidosa empreitada. Por sua honesta posição, sempre ao lado dos índios, o indigenista Eduardo Almeida, terminou por ser dispensado. Uma pena.

 

 Xaropes ineficazes. Remédios vencidos. Afinal, para quem seria o benefício?  O almoxarifado continuaria repleto desses vencidos. O malefício estava feito. A mortalidade infantil era fato. Quantas vezes se discutia com o bispo esta espécie de atuação. Estratégia velada de possível genocídio?

 

 Após seis horas de “voadeira” rio acima, finalmente desembarcava. Os índios, sorridentes, ajudaram a transportar pelo barranco acima as tralhas necessárias ao trabalho de “arranca-dentes”.  Caixas de suprimentos variados. Trazia velas e fósforos, também açúcar, café e biscoitos, coisas que dividiria com os índios. Seriam artigos indispensáveis para um mês de permanência, No final ficaria desprovida mas comungava o bem comum. Comia satisfeita a comida de todos.

 

 As senhoras, missionárias católicas, as simpáticas irmãzinhas francesas da ordem de Santa Tereza, vieram me receber com sorrisos de boas-vindas. Apesar do calor sufocante, trajavam-se elas, invariavelmente, em seus hábitos negros. Os índios, se viam livres de adereços, alguns de calção e outros, na sua maioria, andavam seminus. Questionável era a presença das missionárias católicas por parte de antropólogos ortodoxos. Mas, bem ou mal, dia e noite, estariam elas prontas a arregaçar as mangas, assistindo a comunidade na medida do possível.

 

 Partos complicados.  Malária e disenteria. Males comuns. Fisgadas de arraia eram comuns aos homens que saíam para pescar. Acidentes ali não faltariam. Médico, só de muito longe. Às vezes levavam três meses para chegar até ali. A depender da gravidade vinham de Brasília, pois o da base encontrava-se  sempre em deslocamentos. Fazendo cursos ou em campanha de vacinação.

 

 

 

As missionárias francesas, responsáveis pela catequese dos índios, eram de um apoio logístico inestimável. Principalmente a irmã Maria. Enfermeira graduada, já havia atuado na África, no programa assistencial, o Sem Fronteiras. 

 

 Graças ao aparato radiofônico da missão, podíamos solicitar um barco ou um avião a fim de conduzir o funcionário de volta à sua base. A estas alturas  as águas já estariam bastante altas e a viagem de avião monomotor se tornaria quase inviável. Voltaria de barco outra vez, torcendo para que fosse o de Seu Manoel.

 

 Andava pelos estreitos caminhos da mata entre a aldeia e a sede da missão. Bem, não sei onde começaria a realidade ou onde terminaria a minha vã fantasia.  “Bonjour mademoiselle!”, Era a voz do índio Romany. Espantou-me tal saudação. Bizarro, vinda da boca de um índio Tapirapé.  Naquele longínquo meridiano de uma isolada selva mato-grossense, imaginei possível ordenação, equivocada da luz, na trajetória de primitivos costumes.

 

 Enquanto aí estive, Romany tentou ensinar-me algumas palavras da língua o Tupi. Era bem vinda à aldeia Tapirapé.  Romaní tentou ser meu amigo e assim o conseguiu. Mostrou-me seus desenhos a lápis de cor. Neles se distinguiam  traços próprios daquela cultura. Eram besouros, borboletas e o icônico avião da Funai, cujo  símbolo, bem conhecido por sinal, um vistoso cocar de penas de araras, nas cores azul e amarelo. Inconfundível.

 
Se por acaso chegasse alguma autoridade de Brasília, Romaní fazia questão de usar o quepe e o rayban do piloto. Não sei como conseguiu. Na verdade sentia-se ele comandante, do seu pequenino avião de papel. Pelo seu desenho mostrava-se que nem  um chefe, uma pessoa importante. Fizemos amizade. Romaní ensinou-me as trilhas secretas da floresta. Revelou-me preciosos mimos da natureza. De variadas cores, passarinhos e aves maiores. Quanta diversidade! Fazia questão de citar todos os seus nomes. Tamanha empolgação. Seria quase impossível gravar os muitos nomes, principalmente na língua Tapirapé. Flores pequeninas, delicadas orquídeas brancas, inacessíveis, no alto de longos troncos,  maúbas centenárias. Belas imagens. Inesquecível panorma, restaria-me de consolo.

 

 Somente o básico; um fogareiro a gás, um muflo pesado. E uma caixa de metal com o instrumental que necessitava para o trabalho. Voluntário, Romaní passou a acompanhar-me nos eventos odontológicos, durante a locomoção pela aldeia ele fazia questão de carregar a pesada tralha. Se precisasse de água, lá ia ele pegar.  A mais limpa possível,  num trecho de rio ou num distante igarapé meio escondido entre as árvores. Água boa, dizia ele. Além da função de “arrancadora  dentes”, também tirava moldes dos desdentados a fim de confeccionar as dentaduras. Eram tantas! Na verdade, o trabalho do dentista seria erradicar, definitivamente, os dentes estragados, extraindo-se os injuriados. Seja de adultos ou de crianças. Sentia pena. Não havia nenhum tipo de prevenção odontológica. Falava-se muito. Vocês devem escovar seus dentes após as refeições... Mas eles comiam a toda hora, quando bem entendessem. Era um coquinho aqui, um pequi ali, enfim, como se diz nessas situações, era o mesmo que tentar encher um saco sem fundo. Procurava ensinar-lhes como se deveria escovar os dentes. Palavras ao vento.

 

 A Funai enviara a pedido meu, um lote de caixas com escovas de dentes, em variadas cores.  Todas em tamanho grande! Para minha surpresa, na véspera da partida,  já via algumas dessas espalhadas pelos arredores, nos terreiros das malocas. Serviam apenas para escovar os utensílios domésticos. Se não serviram para seus dentes, pelos menos, para limpar a fuligem das panelas já se mostravam eficientes. Cultura ultrajada. Alimentação introduzida. Açúcar e amidos. Bombons e bolachas. Danos consequentes.

 

 Uma tarde, após longa caminhada juntamente com algumas crianças, alcançamos o plateau da montanha próxima. Uma elevação de talvez noventa metros de altura e que sobressaía imponente na vastidão daquela floresta plana. Espíritos do universo Tapirapé ali habitavam. A vista se mostrava fascinante ante os efeitos lúdicos da luz poente. Variações idílicas em torno do verde. Sentia-me realmente preenchida. A interpretar o mundo ao meu redor, aquele pedaço de paraíso, onde os mosquitos e o calor fariam qualquer um desistir. Aliás, desconforto não sentia. Agonia sublimada.

 

 Sempre ocupada, os dias rapidamente iam se passando. Com pesar, conferia no calendário de bolso, que o dia da partida estaria próximo. Nostalgia. Numa manhã  formada por nuvens escuras, comecei arrumar a bagagem. Agora bem maior, com os presentes que havia recebido dos índios. Romaní foi avisar-me,  lá na enfermaria,  que o barqueiro, atendendo ao pedido do radio da missão,  já havia chegado.  Romaní parecia triste, e eu também. Eis quê naquele instante final, ressuscitando uma certa mentalidade  catequista – que ainda habitava em mim, sem muito refletir, ofertei-lhe exultante,  uma lata de “Biscoito Maria”.  Foi  aí então, que  caí na desgraça sem volta. A da culpa imediata. Pois, aquele universo orgânico, único, em meio a tantas bananas e tubérculos nutritivos, acabara de ser violado. E por mim!  Entretanto, via num sorriso aberto, e sem restrições de estética, de levar  a mão à boca,  o agradecimento sincero. Encheu-me de satisfação.

 

 Romaní correu até a sua maloca. A família o acompanhava. Pronto já retornava, com outro presente: uma pequena e delicada cabaça, decorada com graciosos desenhos geométricos, um motivo Tapirapé, que ele mesmo havia feito. Agradeci emocionada.

 

 Visão surrealista – cachorros famintos e galinhas alvoroçadas já brigavam por pedaços crocantes de biscoito. Subitamente, para minha surpresa, sem demonstrar nenhum constrangimento, via quando ele abria a lata de Biscoito Maria e a esvaziou de todo o seu conteúdo. Eu vi Maria sair da lata!  À vistosa lata dourada destinava-se uma outra função: serviria para guardar a sagrada plumagem das aves. De arara, azul e vermelha, também de colhereiro, periquito e outros pássaros raros. Penas e plumagens. Tão especiais, eram como se fossem um caro artigo de joalheria. Eram as joias da floresta que enfeitariam os corpos em rituais sazonais.  Rituais de iniciação, ocasião de nascimentos e, principalmente, cerimoniais fúnebres.

 

 Os biscoitos não seriam tão importantes assim. Entendi. Mais uma vez ouvi de Romany o suave, “merci, mademoiselle”. Proporção inversa, ou fruto metabólico do meu ego? Sua vozinha entrou no meu sistema e nunca mais daí saiu. O fantasma do espírito desse tempo, de vez em quando,  ainda em mim se faz presente.

 

Lembrei-me então de um fato marcante, quando da passagem dos meus anos de adolescência. Foi no ano de 1969. Meu pai comprara o nosso primeiro aparelho de televisão, para que eu e meus irmãos menores pudessem assistir a chegada do homem à Lua. Feito temporal. Importante. Um marco na história da nossa cultura. Responsável por inexoráveis mudanças que vieram a seguir. As guerras ideológicas e o surgimento do universo eletrônico. O mundo realmente  encolheu.  estrambólico e  feioso, assim era o móvel do aparelho de televisão. Tinha o formato de uma caixa grande, sustentado por três finas pernas de madeira roliça no estilo “decô”. Novidade esta que eu e minhas irmãs logo achamos por bem adaptar ao nosso convívio. Assim, o cobrimos com um paninho de crochê, encimado por gatinhos coloridos de porcelana barata. 

 

 Culturas autocnes, tão diferentes. Lá na taba contente, via cachorros famintos, brigando por pedaços crocantes de “Biscoito Maria”. Na minha imobilidade, diante desse momento único e sem as conexões temporais necessárias, nem no passado nem no presente, caía eu em desamparo. Despencava no abismo das desproporções culturais. Nas selvas quentes do Tapirapé, em meio a uma tarde chuvosa de final de outubro, levitava.  Em contentamentos. Voei por instante, nas asas transparentes do besouro verde. No Tapirapé, Romaní era um índio que falava francês.



 

O bonde e o professor

 

Ainda nos anos 50 e 60, em Salvador, cidade onde nasci, vivia  eu então, no bairro do Garcia, bem em frente ao Colégio Antônio Vieira,  no antigo sobrado de construção colonial, onde no térreo funcionava a padaria do padeiro galego – meu pai. O bonde do Rio Vermelho, já de longe anunciava quando vinha vindo. Os meninos mais afoitos costumavam deitar o ouvido no trilho metálico e assim escutar a sua vibração. O bonde subia e descia, regularmente, a correr nos seus paralelos  trilhos, como a obedecer à rotina do povo pacato daquele lugar. O bonde era pontual. Assim como, também era aquela figura, notável pelos seus hábitos, do homem calado, educadamente refinado, um intelectual, que se via todos os dias vestido discretamente em terno claro e gravata. Costumava comprar pão lá na padaria, geralmente pelas tardes. Sempre no meio do povo, ao subir e descer do bonde, pé no estribo, trazendo um livro embaixo do braço. Pequenos detalhes o faziam distinguido, como sendo pessoa especial, e assim o era.  Conhecido professor de Português de escolas e colégios de Salvador, era também um professor de cátedra. Professor de  Estilística da Língua Portuguesa. Naquele tempo a figura do professor simbolizava respeito e acato. Refiro-me ao emérito Professor Raul Sá.

Quem foi estudante, nessa época em Salvador, por certo foi seu aluno ou então, já tinha ouvido sobre o seu gabarito e da sua fama. Ainda no Colégio das irmãs Sacramentinas, e mais tarde no colégio da Bahia, em Salvador, tive a honra de ser aluna do Professor Raul Sá. Além de morarmos no mesmo bairro, também frequentávamos o mesmo colégio, eu, e as duas filhas do professor.

Diante de um olhar, tão marcante, sob as lentes de grau elevado que usava, suscitava um profundo respeito. Parecia até que estava a ler os nossos pensamentos. Durante a sua aula ninguém ousaria perturbar.

Conhecedor profundo da obra de Aloísio de Azevedo, O Cortiço, acho que lhe dava prazer transitar entre os prédios antigos das ruas de Salvador, fato que, provavelmente, o identificaria com o cenário do romance do referido autor. Quem sabe a vivenciar em cada pardieiro, aqueles personagens, tão bem descritos e marcantes, como se fora uma pintura da época, a paisagem urbana e seus personagens, tão bem elaborada, literariamente,  uma pintura expressiva, feita em largas pinceladas, em cores próprias, não fugindo ao detalhe, todavia, mostrando a situação de vida daquela gente; romances e dramas, ainda  num Brasil Colonial. 

Outro dia, somente pelo prazer de rever antigas paisagens, e também  de poder recordar meus dias de menina e adolescente, caminhava eu, em companhia de Frank, meu esposo. Iniciamos nossa jornada a partir do Corredor da Vitória, e depois, passando pelos jardins do Passeio Público, (hoje totalmente decadente, assim como o palácio ao lado), alcançando a seguir o Forte de São Pedro e,  todo o atabalhoado trecho da Avenida Sete de Setembro, alcançando a seguir o Largo de São Bento, e de quebra,  o prazer em visualizar a estridente beleza da baía azul –, de todos os santos, e, minha também...

Da Praça Castro Alves, subindo a Rua Chile, enfim, fui dar  ao Centro Histórico de Salvador, por andei entre as pessoas do lugar, a observar ensimesmados turistas e condescendentes baianas, em suas tradicionais vestes, sempre atraentes e sorridentes. Embrenhei-me no meio do agitado povo por aquelas ruas e becos apertados, e olhe que não me apoquentava, aquele forte odor, típico cheiro amoniacal, (sublimação da causa justa...), enfim, sentindo a alma do povo baiano, e a minha também. Vez por outra, os fantasmas do passado faziam-se presentes. E ali, à esquina da antiga Faculdade de Medicina da Bahia, visualizei a figura circunspeta, sempre  de óculos, do  Professor Raul Sá. Seguia ele vestido em seu habitual terno de linho, livro embaixo do braço, como sempre de cabeça baixa. Via-o  todo respeitoso, a descer a ladeira do Pelourinho...

Realmente, fiz uma agradável viagem no tempo. Ao cenário do Cortiço, ao lado dos personagens de Aloísio de Azevedo, mas, principalmente, recordando aquele digno mestre da língua portuguesa,  o nobre Professor Raul Sá, aqui perpetuado em o “Bonde e o Professor”, texto da minha autoria.