Máila de Alcaçuz
Arte e Poesia
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Crônicas do meu tempo...
Amália Grimaldi
Bahia – Brasil – 2014
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Amália Grimaldi - Biografia
Na Sicília, mais precisamente em
Siracusa, buscou sentir e assimilar na história da humanidade, resquícios da
cultura greco-romana, e assim, poder perfilar o caminho do elemento migrante.
Entender o porquê da tão longa trajetória percorrida pelo seu avô materno,
vindo a se estabelecer nas terras baianas de Cairu e Valença.
Foi selecionada no concurso de poesia,
Prêmio Damário da Cruz, Fundação Pedro Calmon – Bahia, fazendo parte do livro
publicado pela Secult. Atualmente é cronista semanal do Jornal Valença
Agora. É membro atuante da Academia
Valenciana de Educação, Letras e Artes de Valença – AVELA, e da UBE – União Brasileira de Escritores.
Salada
mista de padeiro galego
O mogno e o vidro
E a coroa de Ciro
E do vil contemporâneo
Essa grande colina erodida
A descrença do homem
Que tem no caído inútil fadiga
O não Ser. O espaço vazio.
Da acácia as cinzas
O pó levará o vento
Mas a luz é quem definirá
A sombra e o contorno do volume
A prisão do tempo não tem saída
Tem calendários. Rosa de ventos.
Caros instantes. Raros caminhos claros.
Uma despensa escura
E suas prateleiras incertas.
Seus dias. Meus dias. Cansados dias.
Não. Não mais haveria discussão
Quem ditaria a regra?
Entre o tempo e o fermento
E o sucesso da massa crescida
Razão na emoção
Valor de esperas atrasadas:
Sublimação temperada
Satisfação consagrada.
O cálice, a mulher
E o touro...
Da palavra inútil
Melhor o silêncio, ou
Um resquício de vergonha.
Bastar-se a si próprio?
Mão exagerada
Via dosar seu engano na guia
Do azedado vinho
Princípio aglutinador
Tardia aquiescência;
Concepção. Percepção.
–
Salada mista de padeiro galego.
Entre o reino e a colônia
Caminho inverso
Trata questão angulosa:
“Madre de Dios...”
O galeão espanhol
(ainda por se achar)
Resiste no mito.
Entre o reino e a colônia
Tesouro que a fé consagrou
Sua riqueza maior
Guarda o imaginário popular.
Anjos barrocos, robustos negros
A circular pelo convés
Dos desejos alheios
Bíceps invejável exibiam
A força e o suor.
E, da albarda malvada,
Provável mialgia lombar.
– O valor da forma
A serviço do tema.
Um sussurro... Um gesto de mão
No escuro é clara a intenção.
Abatido em seus desejos
O homem no pecado
Confronta Deus e Lúcifer.
E..., o Capitão
Padilha...
Nas águas plácidas da baía azul
Deu-se o engasgo fatal...
De tanto comer aspargos, dizem
Tinha ele verde a cara.
– E, Van Dorth então, não resistiu.
Forte argumento é voz repetida
Na íngreme incerteza
Daqueles seus dias
Da fruta nativa seus caroços
Atiçavam por aí...
Entre o barranco e o mar.
Forte argumento é voz repetida;
Sustenta frágil ídolo.
Desse longínquo tempo
Restou-nos certezas
(que a História não conta)
Visto que, do colonizador europeu
(dito civilizado...)
Dele herdamos seus costumes;
Bons e maus.
Bem dizendo o escrivão Caminha
... Lá, tudo o que se planta a terra dá...
Dito e certo! Sob fortes chuvas tropicais
A tão cantada fertilidade nativa
Logo se confirmaria:
–
Sementes vingaram!
Lamento
Marrano
A
torre e o fidalgo
E o
quarto aposento.
Degredo.
Segredo.
Pisos
magnânimos
Ídolos
esculpidos...
Pouca
água. Fala à toa.
O óleo
secou de vez
E a
lamparina
Há
muito se apagou.
O
sentido da Terra faz
O crente
perfeito
Usos e
cultos...
O
mestre e o aprendiz.
Iniciante
discípulo
Almeja
o melhor destino.
– Homens
suados carregam seus fardos.
Estão
surdos
Não
escutam canções de outros
E suas
línguas, tão espinhosas
São
que nem urtigas
A
queimar a pele na própria agonia:
...Não.
Marrano? Não! Marrano não sou eu...
O
velho muro e a verde gosma.
Do
tempo, seus musgos
Nem
sempre aclamados.
Do
barro a alma a fama não salva.
O
Éter. O Planeta. Axioma inicial.
Assisto
o retorno do caracol.
Abóbora
gigante. Razão do conflito.
A
corte no banquete. Meu mundo.
Amplitude
de esfomeados fartos.
No
almoço do cristão galego
Cordeiro
não seria imolado
Mas
aquela sua faca era bem amolada
E o
peru então, seria assim tão bem degolado.
O Galeguinho do Olho Azul
As unhas crescem. Os cabelos
ultrapassam limites.
Vão e voltam. Às vezes nem voltam
mais.
A pele transpira o suor. Sente
frio e calor.
A pele, é este couro, do ser na
sua individualidade
Inequívoca proteção.
O menino saruaba vestia couro cismado
Distinta pele que exibia sua cor.
Aquela, que para ele foi curtida.
Pois, do embrulho o presente, tem no seu melhor
papel
Escondida a essência de seu conteúdo.
Olhos azuis, cabelos loiros...
Na fantasia exaltada sai por aí a repetir
Ser ele descendente de holandês.
Respeitado mito, logo transformar-se-ia em verdade
Na fé em que o povo repetia.
A não ser pela boca desse povo
Registro legal em folhas de livro grande
Isto, nunca foi visto.
Tudo de bom parece que vem do
Norte
Tem lá seu gosto de maçã.
Não comporta travo de caju.
Sol da meia noite aqui não
aconteceria.
Que seja por questão angulosa
Onde residiria tal contemplativa
atitude.
A cor, pode variar a gosto, do
azul celeste
Ao vermelho sangue
Antes passando pelo tom laranja.
Antes ainda, pelo verde cítrico
ácido limão.
Acima e abaixo desse Equador
Variação de cor é apenas questão
formal.
E de pensar que eles nem gostavam
de mangaba!
Entre a calmaria da Gamboa
E o agito do Morro de São Paulo,
Parece-me que somente a agudeza
De suas pedras afiadas podem falar
Forte argumento é voz repetida.
É nessa crença que se imagina
poder alcançar no perdão a graça
divina.
Quiçá, a reencarnação do santo
preferido;
Em mil cuidados por mãos caridosas,
ídolo de barro é carregado em frágil andor.
Balouçante desejo equilibra-se na
bem-aventurança
Eis aí o dogma dos cinco mistérios gozosos
Um rosário de contas suadas
Que o drama do conflito parece envolver.
Outonal Elegia
Da antiga casa somente a fachada permaneceu.
Pendida à porta o número da placa ainda é o mesmo, 68.
De suas paredes,caliças escamadas
Pelas fissuras abertas perdeu-se o encanto aí sumido.
Horizontal crepuscular, sinto o declinar desse tempo
Oca da maldade, toca que sabia antes esperar por mim
Hoje, de sonhos vazia.
Na diurna escuridão que envolve o momento
Debruço-me à janela desse tempo
Enquanto o Sol, lá longe, já fez a sua previsível curva:
Outros aniversários e, natais em celofanes azuis
Embaladas efemérides ainda virão.
E eu aqui, guiada pelas mãos do detalhe,
Encontro- me nua, de ressentimentos desarmada
Enquanto os filhos de outros, ainda estão por nascer
Melhor no que faço, teço sapatinhos de crochê
E, frente à crueldade desse mundo,
Sei bem amarrar pontos ao entrelace.
Que cena mais bela! Diria a mim mesma...
Pois, a cada dia que passa, mais me surpreende as atitudes humanas.
Pode parecer coisa pouca, mas, meditar é um dom, agrega valor a alma.
Desço mais um livro dessa estante...
E, de páginas escolhidas, salta-me o maior prazer.
Oh, mundo turvado! Ou seria esse meu momento pasmo ?
Corro, pois tenho pressa. E no receio de que a luz já se apague,
Embarco nas asas da libélula transparente; alma apaixonada.
Alhures, cantos aqui me chegam, não os de sereia
Mas de um Tritão apaixonado, e que diz esperar por mim.
Sinos estão a repicar. Solto as amarras. Desato cordéis.
Liberta de escrúpulos, já corro
ao seu encontro.
Amália Grimaldi - "Outonal elegia" 2014
Crônicas do meu tempo...
(Amália Grimaldi)
Pingos no chão e bolhas no ar...
Em Salvador, no bairro do Garcia,
lugar pacato onde morava, na Leovigildo Filgueiras, logo ao dobrar-se a esquina
do Colégio Antônio Vieira, havia lá um beco de má fama. Havia nesse lugar
quintais malvistos. Tão difamados eram esses terrenos abandonados! Mas, faziam
a alegria de nossos verdes canudos; aí cresciam fartas mamonas.
Desvio do olhar – A casa de
Leonor, sempre bem cuidada, pintada todos os anos, de tão alva, mais parecia um bolo de noiva! Ficava à
entrada desse beco. Na realidade, tratava-se da Rua da Curva Grande, hoje irreconhecível. Luxuosos arranha-céus foram aí surgindo, ano após ano, e logo
substituíram as graciosas casinhas
coloridas tipo bolo confeitado. No atual movimentado trânsito, de carros novos
reluzentes, diria ser o bairro do Garcia e arredores, tratar-se de morada de alto padrão.
A Curva Grande, que se dobrava à esquina do colégio dos padres, no meu tempo
de menina, lembro-me bem, não rezava lá de
boa reputação. No deslize da atenção adulta,
eu e as meninas gêmeas da Casa da Torre,
mais as outras, as da Casa Rosa, embarcávamos num prazer volátil.
Seguíamos a viajar naquelas esferas transparentes, nossos planetas de luzes – bolhas
de sabão azul.
Canudos de mamona, e, no caneco
esmaltado, água de sabão. Era o quanto bastava. O chão de nossas casas se via
constantemente molhado. Na dança das horas, parte da rotina doméstica, a
vassoura e o esfregão se mostravam incansáveis. Mantra necessário, aquelas
reclamações eram uma forma de oração.
Todos os dias havia falação. Acostumada àquele lenga-lenga, já fazia
ouvido de mouco, e assim, ia passando.
Pingos no chão e bolha no ar!
Como passavam leves aqueles meus dias de menina! Dias ensaboados, no prazer
molhado. E eu, menina levada, escorregadia, sabia bem deslizar nas mentiras. Por
sinal, desculpas bem esfarrapadas, mas, que de certa forma, me livrariam de
possíveis castigos. Detestava ter que ficar de pé de cara contra a parede. – “Vou ali, na casa de tia Gem... Volto já.”
E assim, prontamente desaparecia de vista.
Sumia no fascínio irresistível, de quintais proibidos. A esquadrinhar os
limites impossíveis daquele universo negado, sentia-me livre que nem Marco Polo,
um aventureiro em busca de novas terras.
Fotografia em preto e branco costuma
exibir facínora de crônica policial. Cara feia de meter medo a menino. E a gente
grande também. Personagens de rua vestem, muitas vezes, acontecimentos
sinistros. Na aparência se fazem figuras do mal. Havia justificada preocupação. Até que um
dia, as barras de sabão azul, para nosso desapontamento, desapareceram do
tanque de lavar roupa. Se bem que eram tantos os culpados, mas, não se poderia
apontar o dedo. Não havia lá muita certeza. Sem outra alternativa, os adultos
sabidos, acharam melhor esconder o sabão de nossas vistas. Na verdade, em
decorrência de tanta proibição, criatividade nunca nos faltaria. Logo
arranjávamos outra saída.
Guerra de arraias. Com os meninos
do Beco do Sabino aprendemos fazer coloridas arraias de papel de seda e lascas
de bambu. Mal intencionada, a linha, como ainda se faz até hoje, era temperada
com uma espécie de cola sinistra. Para tal se fazia necessário moer o vidro, o
ingrediente principal. Cabia ao bonde fazer o serviço de graça. Garrafas
vazias, de vinho ou de cerveja, surrupiadas às pressas das prateleiras da
escura despensa da casa seriam, a contento, esvaziadas para tal. Nem pensávamos
nas possíveis consequências – doloridas chibatadas de correia e bolos de
palmatória. Mais tarde davam por falta das garrafas. Fazíamos cara de inocente
e ficava por isso mesmo.
De ruas e de vielas mais próximas,
do Beco do Sabino e do Beco dos Protestantes, costumava reunir uma turma notável.
Mais precisamente pelos malfeitos. Meninas e meninos, mais ou menos da
mesma idade, fazíamos juntos incursões
desastradas. Sem precauções, enfiávamos por aqueles quintais, um mundo de
perigos fascinantes. Ninguém por lá nos poderia achar, de tão densa que
era a vegetação. Cortar o dedo em cacos de vidro ou em latas de conserva era
acontecimento banal. Ao passar de raspão
pelos arbustos de urtiga e cansanção, muitas vezes dolorosas queimaduras nos
faziam chorar de dor e logo corríamos para casa. “Urine em cima que
passa...” Na verdade doía mais ainda.
Pingos no chão e bolhas no ar! Corríamos atrás da nossa preciosa invenção.
Verdes canudos de mamona. A chafurdar por aqueles quintais repletos de rejeitos
domésticos divertíamo-nos a valer. Tudo isso sem a falsa necessidade de brinquedos
de colorida matéria plástica “made in USA”. Carrinhos e bonecas, os brinquedos
dos possuídos de bens eram comprados nas lojas caras de Salvador, na subida da Rua
Chile.
Quintais reveladores de gratas
surpresas. Esses lugares cheinhos de perigos nos atraíam. Via-se aí coisas
impensáveis. Até brinquedos caros! Levemente danificados eram despejados nos terrenos baldios. Os criados da Casa Amarela e também os da
Casa Alva, sob as ordens dos patrões, disto se encarregavam.
Férias escolares. Tempo de
vadiar. A boneca loira de olhos azuis com um rombo na cabeça foi disputada a
tapas. Ganhei! Mas, ao chegar em casa,
que decepção! Arrancada das minhas mãos, logo foi levada de volta ao lugar de onde
tinha vindo – para o lixão da Curva Grande.
Na realidade, havia aí nesse
pedaço de bairro, além de quintais malvistos, o império de uma feia
maldade – um espaço de separação radical. As amas, da
Casa Azul e as da Casa Amarela, seriam encarregadas de manter as meninas de
seus amos afastadas, o mais distante possível,
do nosso grupo.
O grupo dos rebeldes. – Leonor, a
menina esnobe da Casa Branca, virava a cara para mim quando passava. Ah, como
odiava Leonor! Observava de soslaio, quando ela seguia galante, ao lado da babá
empertigada, que usava touca e avental, um impecável e engomado uniforme
branco. Mas, não é que de certa forma até nos comunicávamos: em retrubuição fazíamos caretas horrorosas.
Trocávamos gestos, não muito educados, mas, de grande satisfação afinal.
Cabelo rapado e pimpão ajeitado em pastosa
brilhantina. O estilo topete era moda na
época. Havia guerra de mamonas. Meninas contra meninos. Ardilosa, sabia manejar
bem o estilingue. Logo surgiam lustrosos calombos nas cabeças dos meninos. Só
os mais fracos choravam. Bobos! Por isso mesmo se tornavam alvo predileto de
nós meninas. Quantas vezes corria a
esconder-me no interior do enorme guarda-roupa negro de imbuia no quarto do
meio! Sentia-me culpada por fazer o menino Solon chorar. O coitadinho era tão
franzino! A mãe, Dona Olga, professoara da banca de Matemática, costumava enviar
seu porta-voz, pau pra toda obra, a ama da família, que batia à nossa
porta. Amélia, a nossa fiel ama negra, sabia
usar de bom senso. Tentava acalmar os ânimos.
– “Pode deixar... O pai dela vai
logo saber. Assim que sair a última fornada. Ela (eu) vai ficar de castigo!”
Geralmente isto não acontecia. Afinal, eram tantas as reclamações! Não
adiantava mesmo levar adiante aborrecimentos menores. “Coisa de
criança...”
Meu pai, o padeiro galego do
bairro, simpático e comunicativo, nem tinha ainda cabelo branco quando
enviuvou. Disputado pelas solteironas do bairro, principalmente por Dona Olga,
que sabia nos tapear nos enchendo de mimos com deliciosos bolinho-de-estudante,
ainda bem quentinhos, que costumava mandar para nossa casa, num pratinho de
porcelana fina, de orla dourado. “Quem a boca de meu filho adoça...” Mas, parecia
que meu pai não se entusiasmava por tais quitutes. Ele andava mesmo era muito
ocupado. Não se decidia. Nem por esta, nem por aquela. E eram tantas! Noite e
dia se via meu pai ao batente, entre o forno e o balcão. Costumava acordar bem
cedinho. Mantinha a mão na massa, da manhã até ao anoitecer. Até que fosse
vendido o último pão do balaio.
Notável paleta de cores, era aquele
dia que se ia feliz: final de tarde ao
sol poente. No batente da frente já se via cama feita, breve morada de um cão
sarnento. Satisfeito, na má fama que
possuía, Plutão, o velho cachorro de rua, contente, se lambia aos nossos pés.
Pingos no chão e bolha no ar!
Regresso ao templo da infância, lá vejo ao canto desprezado o velho armário de
cozinha. Portas trancadas. Chave escondida no bolso do avental. A ocultar a razão
do efeito inebriante, desejo negado, moveria prazer intocável. Efêmero existir
suportaria o medo no mito da calada intenção adulta. Sim, porque teria na voz,
a chave a vez do “não”. Sua intenção malvada.
Terrenos baldios. Histórias
reais. Mamonas verdes aí cresciam fartas. Por entre fornadas de pão-de-açúcar
seguíamos soprando os nossos canudos verdes. Bolhas no ar! E assim fomos
crescendo, inteligentes; na sábia arte de driblar os adultos tolos. Quantas vezes retornaria aos ermos quintais
da minha cara lembrança! De casas abandonadas dos barrancos molhados; afamados
sumidouros da Rua da Curva Grande. Aventura de criança, precaução de adultos.
Medo razoável. O que viria depois? Irresistível orbitar. A sensação do prazer
intocável. Sem mágoas apresso meu passo. Refaço-me em águas antigas. – Pingos
no chão e bolhas no ar!
Um índio que
falava francês
Brasil Central. Latitude 14° Norte. Outubro de 1982. Já caía a noite. Da minha base, na aldeia
Karajá de Hãwàló, em Santa Isabel do Morro, à margem esquerda grandioso rio
Araguaia, na Ilha do Bananal, um remoto posto indígena, a esse tempo
administrado pelo recém-contratado indigenista Eduardo Almeida. Como eu, ele
também era de Salvador e assim, nos entendíamos muito bem.
Em São Félix do Araguaia, na margem oposta do
rio, já nos limites do estado do Mato Grosso com Goiás, hoje Tocantins, ficava a paróquia sede do bispo revolucionário
Dom Pedro Casaldáliga. Fundador da
Pastoral da Terra, e ideologicamente considerado homem perigoso. Sob um regime
politico autoritário, os militares ainda no poder, este religioso sofria sob variados tipos de
repressão, de tortura velada. São Félix do Araguaia, para nós funcionários da
Funai, tornara-se um lugar proibido, perigoso. Um terreno minado. Havia gente
nos olhando, vigiando. Cochichos e delações, prazer de muitos “dedo-duro”.
Algumas vezes, na surdina, também estive aí visitando o bispo. Privilégio meu. Tive
a oportunidade de assistir algumas discussões relevantes em torno de assuntos
beligerantes. – O índio versus posseiro. Discutia-se o assistencialismo por
parte do órgão federal encarregado da proteção dos índios.
Missão de trabalho. Rumo norte alcançaria a
aldeia de Macaúba. A seguir, a aldeia Javaé. Alcançando o rio Tapirapé, a
aldeia do mesmo nome e na mesma área, uma pequena comunidade Karajá. Uma mineira de Pedra Azul, Rosinha, moça
tímida, era a professora recém-contratada pela Funai. Seguiria viagem comigo no
mesmo barco.
Percalços de viagem, uma aventura invulgar,
marcaria as nossas vidas a partir de então. Diria que, prenúncio de tragédia anunciada, mas que
felizmente não chegaria a acontecer. Tornamo-nos amigas. Rosinha deixava
entrever na sua delicada e pálida face, uma expressão de natural preocupação: o
encontro direto com um mundo desconhecido até então. Sua destinação seria o
posto indígena da aldeia Karajá de Macaúba, à margem esquerda do grande
Araguaia.
Comunicação precária. Valia-se do rádio ou do
telégrafo. Não havia ainda nesse tempo telefone celular, nem tão pouco
computador. Caberia ao chefe do posto de
Macaúba, o gaúcho Lourenço, o manejo daquela parafernália. “Câmbio... Câmbio...
Alfa Tango...” Linguagem cifrada, seria um meio indispensável de sobrevivência
frente ao inesperado naquelas paragens selváticas, longe de tudo e de todos,
mas, perto, muito mais perto do que se pensava, do perigo, muitas vezes
invisível, como no caso da terrível malária. Sei bem o que é tremer de bater
queixo, e não tem cobertor que dê jeito. Depois teria que engolir aqueles
comprimidos enormes de quinino e esperar pelo melhor, ou pelo pior – longos
dias na cama do hospital.
Isolada, longe do meio urbano (assim como
eu), Rosinha teria que se fazer valer do uso de seu bom senso. Sabedoria, seria
a nossoa fiel companheira. Ser corajosa afastaria os medos. Uma vez por mês, às
vezes nem isto, teria a visita de um dentista, do médico e da enfermeira que
viria aplicar vacinas necessárias.
Como de costume, a cada três meses, seguia eu
em missão de trabalho. Durante a estação das cheias, o transporte, muitas vezes
precário, em barcos relativamente pequenos, eram sempre cheios. Os pequenos
aviões que se fretavam, os monomotores, estariam disponíveis somente na época
da estiagem. Nessa específica área de mata isolada, entremeada por rios,
igarapés e lagoas, eu era a única dentista disponível, a serviço da Funai. Por
dois anos permaneci como tal. Até que um dia, o coronel, chefe do departamento
de saúde, lá em Brasília, ao qual estava subordinada, olhou para os belos desenhos
geométricos que estampava no corpo, motivos
Karajá que a Xureréa, mãe do Korihete, antiga mulher do cacique Maluaré havia pintado
com pigmento negro, nos meus braços e
mãos com uma tinta feita de
jenipapo e carvão. Virando-se para o
assistente ao lado, o coronel, ironicamente perguntou: "é esta a dentista
que queria se tornar índia?!" Pronto!
Isto foi apenas o início do meu fim. No regresso das minhas férias em Salvador,
estaria, posteriormente, irrevogavelmente demitida.
Atrelada à uma equipe técnica mista, viajava rumo às comunidades indígenas, contornando a
Ilha do Bananal, navegando o braço menor do rio Javaés, quando então, chegávamos
à aldeia Javaé e Macaúba, que ficavam bem próximas uma da outra. Rio acima, alcançávamos o rio Tapirapé, e a
aldeia indígena do mesmo nome, sob o comando de uma missão religiosa francesa –
Terezinha de Jesus.
Calor infernal, mosquitos e desconforto.
Nossas vidas estariam, literalmente falando, nas mãos de Seu Manoel, um
conhecido barqueiro, homem nativo dessa região, considerado bravo e corajoso, na
sua experiência de muitos anos, sabedor de cada curva do rio, tornara-se ele
muito respeitado. Confiável. Nele creditava-se
viagem segura.
Término da estiagem. A cada curva do rio, que
ainda se estreitava devido ao avanço das praias, os bancos de areia se
revelavam traiçoeiros. O Araguaia, entre o nascente e o poente, exibia aquela
maravilhosa paisagem. Única. Novos eventos. Cada viagem revelava surpresas.
Jacarés enormes, sonolentos lagartos me lembravam pré-históricos dinossauros.
Um olho fechado e outro aberto, mas estando
bem despertos, pareciam em sono profundo.
Seus ouvidos estariam bem abertos a qualquer movimento mais próximo. Um
passante incauto, ave desavisada e capivara sedenta, por certo cairiam logo no
papo do faminto jacaré. Natureza pródiga. A cadeia alimentar aí se completava.
Seus dentes, juntamente com a força da portentosa mandíbula, causavam receio.
Animal poderoso! Todos nós tínhamos medo dos jacarés. Talvez por sua bizarra
aparência. Quando da aproximação (intrusa) no seu habitat certamente se
sentiriam ameaçados e avançavam.
Seguíamos a viagem de maneira plácida, mas
atentas aos obstáculos, geralmente pedaços de pau, troncos de árvores, que
caíam dos barrancos costeiros e que poderia causar acidentes. Poderiam
danificar a hélice do motor do barco, mas Seu Manoel estava de olho, par evitar
suspresas. Confiadas, acompanhávamos
enlevadas, aquela deslumbrante paisagem que ia se revelando a cada curva do
rio.
Finalzinho de tarde meio nublado. Qual manto
envolvente, assistíamos a descida daquele sinistro cobertor, um cobertor de
nuvens escuras. O horizonte à nossa
frente subitamente desapareceu. Inflado
os medos, diante de tal aviso, o qual
não se poderia ser ignorado, visto que já
soprava um forte vento de proa.
Eliminadas assim possíveis dúvidas, chegou-se à uma sábia decisão: seria
de boa prudência passar a noite num daqueles bancos de areia. O mais alto
possível, um pedaço desnudado pela seca do verão, mas que já se ía tangido
pelos ventos da nova estação; as águas do rio Araguaia já subiam de nível. E
rapidamente, assim me pareceu. Aí, tinha certeza, ou quase, que não correríamos
riscos. Pelo menos, ao lado de Seu Manoel, assim se pensava.
Cauteloso, Seu Manoel diminuiu a marcha do
motor. Aportou bem devagarzinho às margens do mais alto barranco. Água rasa, cuidou
logo de levantar a rabeta do motor a fim que esta não viesse a bater na areia.
Correria o risco de danificar-se. A seguir, desembarcou parte da bagagem. A
minha gorda mochila, a dele, é claro, e
a da professora Rosinha, esta também avolumada, pois se tratava de óbvio
excesso de primeira viagem.
Trazia o barqueiro, como de costume, em
missão de viagem longa, uma manta plástica de bom tamanho. Quanto a nós, as
duas mulheres, já fragilizadas pela perversa besta do medo crescente, não
trazíamos coisa parecida, proteção
necessária, em caso de chuva num barco aberto como aquele. Talvez por
esquecimento, não se cuidara antes desses pequenos, mas, revelados importantes
detalhes.
A chuva já se avizinhava. Apavorante. Traria
com ela um forte temporal, com a potência energética de raios e trovões. Fenômeno muito comum a essa época de final de outubro na região do
Brasil Central.
Curiosa, notei que Seu Manoel ia cavando com as
suas largas mãos, na areia molhada, um largo buraco. Esculpiu, na sua
experiência sertaneja, um largo espaço, um vão, não tão fundo, mas o suficiente
para caber encolhido o seu avantajado corpanzil. Valor inestimável, era aquela sua inseparável maleta de executivo, uma 007 de couro negro, a qual, carinhosamente,
junto ao seu corpo logo acomodaria. Seu
Manoel conservava-se calado. Tenso, diria. Apenas agia. Então entendemos que
deveríamos fazer o mesmo. Por sorte, ainda havia de reserva no barco outras mantas plásticas. Não tão largas como
a dele, mas que nos serviriam, pelo menos para cobrir as nossas cabeças. Seu
Manoel, sem dizer uma palavra, gentilmente, no seu jeito caboclo, logo nos estendeu.
Antes de adentrar a sua alcova-buraco, Seu
Manoel abriu a maleta 007, e, daí ví
quando retirava uma arma – um revólver! Meu Deus! Pelo tamanho imaginei
tratar-se de um “trinta e oito”. Já tinha visto coisa parecida, provavelmente nas
páginas e crônicas policiais de jornais. Rosinha e eu, ainda com muito medo,
não tínhamos palavras para retrucar. Nunca na minha vida havia tocado numa
arma! Rosinha tão pouco.
“Meninas, não façam cerimônias! Qualquer
coisa... Podem se servir!!!.” Expressado de uma maneira tão natural, com
tapinhas sobre o sinistro volume que já descansava sobre a sua maleta. Isto
soou para nós como uma espécie de caçoada. Estaria arreliando de nós duas?! Homem
prático e viajado, Seu Manoel não tinha mais ou menos. Ia logo direto ao ponto.
Ao que falava se dava crédito. Pelo menos por questões de sobrevivência. Aliás,
nunca escutara antes, principalmente por
tratar-se de um cavalheiro rude, tamanha “gentileza”.
Rastejante, como um lagarto, via quando Seu
Manoel, jeitosamente, se enfiava sob a larga manta. Logo via-se todo
coberto na sua alcova-buraco, ao lado de seu valioso pertence –, a sua maleta
007 e o revólver “três oitão”.
Tremendo de frio e de medo, meio aterrorizadas,
Rosinha e eu, significativamente nos
entreolhamos. – Meu Deus! O que será da
gente! Pensei preocupada. Acho que ela também. Este foi sem dúvida um dos
momentos da minha vida em que mais me senti indefesa. Nem durante as minhas andanças pela vasta selva
amazônica, nas trilhas percorridas entre Colômbia, Peru e Brasil, trecho problemático, com o tráfico de drogas,
de animais silvestres e de madeira, uma faixa de fronteira tríplice, lugar onde
vivi por cinco longos anos, nunca me senti desse jeito. Diria desvalida.
Entendi a lição. A partir daquele momento, sem pai nem mãe, seria cada um por
si e, Deus por todos.
De longe nos alcançava o estrugir de onças e
os mil ruídos de bichos outros.
Ameaçador. Tão longe e tão
próximo! Este era o som da floresta circundante que tomava conta da noite.
Ninguém ali iria dormir. Talvez cochilasse um pouco. Por questões de
sobrevivência, nem é preciso dizer, acho que ninguém, em sã consciência,
conseguiria dormir numa situação daquelas. Procurei afastar a lembrança
temerosa da tarde. Aqueles enormes
jacarés ao longo das praias, não muito longe de onde estávamos.
Lanterna prestativa. Seria uma boa arma de
salvação, pelo menos assim pensava. Com frequência clareava o mostrador do
relógio. Acho que estas foram as horas mais arrastadas da minha vida.
Finalmente aliviada, assistia aos primeiros sinais de um final prolongado de
uma madrugada sinistra. A radiosa
aurora, cuja luminosidade, resplandecente no céu ainda meio escuro, logo
desvaneceu os maus presságios. Aos primeiros lampejos do sol logo partiríamos.
Sem o café da manhã. Na ansiedade, enchemos o nosso estômago com água e muitas
bolachas, uma atrás da outra. Só nos
restava sonhar com uma mesa bem posta. Talvez com sorte, pão torrado e banana frita e, o aroma volátil
de um café recém-coado. Apenas miragem distante. Ilusão de faminto.
Paramos em Macaúba. Fomos bem recebidos pelo
chefe do posto, o gaúcho Lourenço. Curiosamente ele era casado com a índia
Suyá, a filha do velho Karovina, um dos
chefes da aldeia Karajá. Comemos bananas
cruas, e beijus sem sal. Ao invés de café, somente água fria do pote, gentilmente oferecida.
Abastecemos o barco com as frutas que Lourenço amavelmente nos ofertou.
Despedidas. Abraços, recados e recomendações.
A professora Rosinha ficou. E nós, o barqueiro e eu, partimos. No barco, restou
um enorme vazio. Sentíamos falta da mineirinha de Pedra Azul. Embora calada,
sua presença somava esforços. Companheirismo.
Finalmente, já no Tapirapé. Preocupada com o
tempo, comecei a pensar como seria a volta a Santa Isabel do Morro, a minha
base já tão distante. A estação das chuvas comumente trazia incertezas. Algo me
dizia, que após missão cumprida, como em outras ocasiões, regressaria sã e
salva. Remeteria à Funai em Brasília
para avaliação de praxe, os muitos papéis, geralmente em quatro vias, relatórios de mais uma
atuação. Quanto à minha pessoa,
restariam muitas dúvidas, e questionamentos lógicos quanto a duvidosa
empreitada. Por sua honesta posição, sempre ao lado dos índios, o indigenista
Eduardo Almeida, terminou por ser dispensado. Uma pena.
Xaropes ineficazes. Remédios vencidos.
Afinal, para quem seria o benefício? O
almoxarifado continuaria repleto desses vencidos. O malefício estava feito. A
mortalidade infantil era fato. Quantas vezes se discutia com o bispo esta
espécie de atuação. Estratégia velada de possível genocídio?
Após seis horas de “voadeira” rio acima,
finalmente desembarcava. Os índios, sorridentes, ajudaram a transportar pelo
barranco acima as tralhas necessárias ao trabalho de “arranca-dentes”. Caixas de suprimentos variados. Trazia velas
e fósforos, também açúcar, café e biscoitos, coisas que dividiria com os
índios. Seriam artigos indispensáveis para um mês de permanência, No final
ficaria desprovida mas comungava o bem comum. Comia satisfeita a comida de
todos.
As senhoras, missionárias católicas, as
simpáticas irmãzinhas francesas da ordem de Santa Tereza, vieram me receber com
sorrisos de boas-vindas. Apesar do calor sufocante, trajavam-se elas,
invariavelmente, em seus hábitos negros. Os índios, se viam livres de adereços,
alguns de calção e outros, na sua maioria,
andavam seminus. Questionável era a presença das missionárias católicas por
parte de antropólogos ortodoxos. Mas, bem ou mal, dia e noite, estariam elas
prontas a arregaçar as mangas, assistindo a comunidade na medida do possível.
Partos complicados. Malária e disenteria. Males comuns. Fisgadas
de arraia eram comuns aos homens que saíam para pescar. Acidentes ali não
faltariam. Médico, só de muito longe. Às vezes levavam três meses para chegar
até ali. A depender da gravidade vinham de Brasília, pois o da base
encontrava-se sempre em deslocamentos.
Fazendo cursos ou em campanha de vacinação.
As missionárias francesas, responsáveis pela
catequese dos índios, eram de um apoio logístico inestimável. Principalmente a
irmã Maria. Enfermeira graduada, já havia atuado na África, no programa assistencial,
o Sem Fronteiras.
Graças ao aparato radiofônico da missão,
podíamos solicitar um barco ou um avião a fim de conduzir o funcionário de
volta à sua base. A estas alturas as
águas já estariam bastante altas e a viagem de avião monomotor se tornaria
quase inviável. Voltaria de barco outra vez, torcendo para que fosse o de Seu
Manoel.
Andava pelos estreitos caminhos da mata entre
a aldeia e a sede da missão. Bem, não sei onde começaria a realidade ou onde
terminaria a minha vã fantasia. “Bonjour
mademoiselle!”, Era a voz do índio Romany. Espantou-me tal saudação. Bizarro,
vinda da boca de um índio Tapirapé.
Naquele longínquo meridiano de uma isolada selva mato-grossense,
imaginei possível ordenação, equivocada da luz, na trajetória de primitivos
costumes.
Enquanto aí estive, Romany tentou ensinar-me
algumas palavras da língua o Tupi. Era bem vinda à aldeia Tapirapé. Romaní tentou ser meu amigo e assim o
conseguiu. Mostrou-me seus desenhos a lápis de cor. Neles se distinguiam
traços próprios daquela cultura. Eram besouros, borboletas e o icônico avião da
Funai, cujo símbolo, bem conhecido por
sinal, um vistoso cocar de penas de araras, nas cores azul e amarelo.
Inconfundível.
Somente o básico; um fogareiro a gás, um
muflo pesado. E uma caixa de metal com o instrumental que necessitava para o
trabalho. Voluntário, Romaní passou a acompanhar-me nos eventos odontológicos,
durante a locomoção pela aldeia ele fazia questão de carregar a pesada tralha.
Se precisasse de água, lá ia ele pegar.
A mais limpa possível, num trecho
de rio ou num distante igarapé meio escondido entre as árvores. Água boa, dizia
ele. Além da função de “arrancadora
dentes”, também tirava moldes dos desdentados a fim de confeccionar as
dentaduras. Eram tantas! Na verdade, o trabalho do dentista seria erradicar,
definitivamente, os dentes estragados, extraindo-se os injuriados. Seja de
adultos ou de crianças. Sentia pena. Não havia nenhum tipo de prevenção
odontológica. Falava-se muito. Vocês devem escovar seus dentes após as
refeições... Mas eles comiam a toda hora, quando bem entendessem. Era um
coquinho aqui, um pequi ali, enfim, como se diz nessas situações, era o mesmo que
tentar encher um saco sem fundo. Procurava ensinar-lhes como se deveria escovar
os dentes. Palavras ao vento.
A Funai enviara a pedido meu, um lote de
caixas com escovas de dentes, em variadas cores. Todas em tamanho grande! Para minha surpresa,
na véspera da partida, já via algumas
dessas espalhadas pelos arredores, nos terreiros das malocas. Serviam apenas
para escovar os utensílios domésticos. Se não serviram para seus dentes, pelos
menos, para limpar a fuligem das panelas já se mostravam eficientes. Cultura
ultrajada. Alimentação introduzida. Açúcar e amidos. Bombons e bolachas. Danos
consequentes.
Uma tarde, após longa caminhada juntamente
com algumas crianças, alcançamos o plateau da montanha próxima. Uma elevação de
talvez noventa metros de altura e que sobressaía imponente na vastidão daquela
floresta plana. Espíritos do universo Tapirapé ali habitavam. A vista se
mostrava fascinante ante os efeitos lúdicos da luz poente. Variações idílicas
em torno do verde. Sentia-me realmente preenchida. A interpretar o mundo ao meu
redor, aquele pedaço de paraíso, onde os mosquitos e o calor fariam qualquer um
desistir. Aliás, desconforto não sentia. Agonia sublimada.
Sempre ocupada, os dias rapidamente iam se
passando. Com pesar, conferia no calendário de bolso, que o dia da partida
estaria próximo. Nostalgia. Numa manhã
formada por nuvens escuras, comecei arrumar a bagagem. Agora bem maior,
com os presentes que havia recebido dos índios. Romaní foi avisar-me, lá na enfermaria, que o barqueiro, atendendo ao pedido do radio
da missão, já havia chegado. Romaní parecia triste, e eu também. Eis quê
naquele instante final, ressuscitando uma certa mentalidade catequista – que ainda habitava em mim, sem
muito refletir, ofertei-lhe exultante,
uma lata de “Biscoito Maria”.
Foi aí então, que caí na desgraça sem volta. A da culpa
imediata. Pois, aquele universo orgânico, único, em meio a tantas bananas e
tubérculos nutritivos, acabara de ser violado. E por mim! Entretanto, via num sorriso aberto, e sem restrições
de estética, de levar a mão à boca, o agradecimento sincero. Encheu-me de
satisfação.
Romaní correu até a sua maloca. A família o
acompanhava. Pronto já retornava, com outro presente: uma pequena e delicada
cabaça, decorada com graciosos desenhos geométricos, um motivo Tapirapé, que
ele mesmo havia feito. Agradeci emocionada.
Visão surrealista – cachorros famintos e
galinhas alvoroçadas já brigavam por pedaços crocantes de biscoito.
Subitamente, para minha surpresa, sem demonstrar nenhum constrangimento, via
quando ele abria a lata de Biscoito Maria e a esvaziou de todo o seu conteúdo.
Eu vi Maria sair da lata! À vistosa lata
dourada destinava-se uma outra função: serviria para guardar a sagrada plumagem
das aves. De arara, azul e vermelha, também de colhereiro, periquito e outros
pássaros raros. Penas e plumagens. Tão especiais, eram como se fossem um caro
artigo de joalheria. Eram as joias da floresta que enfeitariam os corpos em
rituais sazonais. Rituais de iniciação,
ocasião de nascimentos e, principalmente, cerimoniais fúnebres.
Os biscoitos não seriam tão importantes
assim. Entendi. Mais uma vez ouvi de Romany o suave, “merci, mademoiselle”.
Proporção inversa, ou fruto metabólico do meu ego? Sua vozinha entrou no meu
sistema e nunca mais daí saiu. O fantasma do
espírito desse tempo, de vez em quando,
ainda em mim se faz presente.
Lembrei-me então de um fato marcante, quando da
passagem dos meus anos de adolescência. Foi no ano de 1969. Meu pai comprara o
nosso primeiro aparelho de televisão, para que eu e meus irmãos menores
pudessem assistir a chegada do homem à Lua. Feito temporal. Importante. Um
marco na história da nossa cultura. Responsável por inexoráveis mudanças que
vieram a seguir. As guerras ideológicas e o surgimento do universo eletrônico.
O mundo realmente encolheu. estrambólico e feioso, assim era o móvel do aparelho de
televisão. Tinha o formato de uma caixa grande, sustentado por três finas
pernas de madeira roliça no estilo “decô”. Novidade esta que eu e minhas irmãs
logo achamos por bem adaptar ao nosso convívio. Assim, o cobrimos com um
paninho de crochê, encimado por gatinhos coloridos de porcelana barata.
Culturas autocnes, tão diferentes. Lá na taba
contente, via cachorros famintos, brigando por pedaços crocantes de “Biscoito
Maria”. Na minha imobilidade, diante desse momento único e sem as conexões
temporais necessárias, nem no passado nem no presente, caía eu em desamparo.
Despencava no abismo das desproporções culturais. Nas selvas quentes do
Tapirapé, em meio a uma tarde chuvosa de final de outubro, levitava. Em contentamentos. Voei por instante, nas
asas transparentes do besouro verde. No Tapirapé, Romaní era um índio que
falava francês.
O bonde e o professor
Ainda nos
anos 50 e 60, em Salvador, cidade onde nasci, vivia eu então, no bairro do Garcia, bem em frente
ao Colégio Antônio Vieira, no antigo
sobrado de construção colonial, onde no térreo funcionava a padaria do padeiro
galego – meu pai. O bonde do Rio Vermelho, já de longe anunciava quando vinha
vindo. Os meninos mais afoitos costumavam deitar o ouvido no trilho metálico e
assim escutar a sua vibração. O bonde subia e descia, regularmente, a correr
nos seus paralelos trilhos, como a
obedecer à rotina do povo pacato daquele lugar. O bonde era pontual. Assim
como, também era aquela figura, notável pelos seus hábitos, do homem calado,
educadamente refinado, um intelectual, que se via todos os dias vestido
discretamente em terno claro e gravata. Costumava comprar pão lá na padaria,
geralmente pelas tardes. Sempre no meio do povo, ao subir e descer do bonde, pé
no estribo, trazendo um livro embaixo do braço. Pequenos detalhes o faziam
distinguido, como sendo pessoa especial, e assim o era. Conhecido professor de Português de escolas e
colégios de Salvador, era também um professor de cátedra. Professor de Estilística da Língua Portuguesa. Naquele
tempo a figura do professor simbolizava respeito e acato. Refiro-me ao emérito
Professor Raul Sá.
Quem foi
estudante, nessa época em Salvador, por certo foi seu aluno ou então, já tinha
ouvido sobre o seu gabarito e da sua fama. Ainda no Colégio das irmãs
Sacramentinas, e mais tarde no colégio da Bahia, em Salvador, tive a honra de
ser aluna do Professor Raul Sá. Além de morarmos no mesmo bairro, também
frequentávamos o mesmo colégio, eu, e as duas filhas do professor.
Diante de um
olhar, tão marcante, sob as lentes de grau elevado que usava, suscitava um
profundo respeito. Parecia até que estava a ler os nossos pensamentos. Durante
a sua aula ninguém ousaria perturbar.
Conhecedor
profundo da obra de Aloísio de Azevedo, O Cortiço, acho que lhe dava prazer
transitar entre os prédios antigos das ruas de Salvador, fato que,
provavelmente, o identificaria com o cenário do romance do referido autor. Quem
sabe a vivenciar em cada pardieiro, aqueles personagens, tão bem descritos e
marcantes, como se fora uma pintura da época, a paisagem urbana e seus
personagens, tão bem elaborada, literariamente,
uma pintura expressiva, feita em largas pinceladas, em cores próprias,
não fugindo ao detalhe, todavia, mostrando a situação de vida daquela gente;
romances e dramas, ainda num Brasil
Colonial.
Outro
dia, somente pelo prazer de rever antigas paisagens, e também de poder recordar meus dias de menina e
adolescente, caminhava eu, em companhia de Frank, meu esposo. Iniciamos nossa
jornada a partir do Corredor da Vitória, e depois, passando pelos jardins do
Passeio Público, (hoje totalmente decadente, assim como o palácio ao lado), alcançando
a seguir o Forte de São Pedro e, todo o
atabalhoado trecho da Avenida Sete de Setembro, alcançando a seguir o Largo de
São Bento, e de quebra, o prazer em
visualizar a estridente beleza da baía azul –, de todos os santos, e, minha
também...
Da
Praça Castro Alves, subindo a Rua Chile, enfim, fui dar ao Centro Histórico de Salvador, por andei
entre as pessoas do lugar, a observar ensimesmados turistas e condescendentes
baianas, em suas tradicionais vestes, sempre atraentes e sorridentes. Embrenhei-me
no meio do agitado povo por aquelas ruas e becos apertados, e olhe que não me
apoquentava, aquele forte odor, típico cheiro amoniacal, (sublimação da causa
justa...), enfim, sentindo a alma do povo baiano, e a minha também. Vez por
outra, os fantasmas do passado faziam-se presentes. E ali, à esquina da antiga
Faculdade de Medicina da Bahia, visualizei a figura circunspeta, sempre de óculos, do
Professor Raul Sá. Seguia ele vestido em seu habitual terno de linho,
livro embaixo do braço, como sempre de cabeça baixa. Via-o todo respeitoso, a descer a ladeira do
Pelourinho...
Realmente,
fiz uma agradável viagem no tempo. Ao cenário do Cortiço, ao lado dos
personagens de Aloísio de Azevedo, mas, principalmente, recordando aquele digno
mestre da língua portuguesa, o nobre
Professor Raul Sá, aqui perpetuado em o “Bonde e o Professor”, texto da minha
autoria.
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